Ex libris Chris / Na cabeça

Nu, de botas

Passei, recentemente, umas horas na companhia de Antonio Prata. Sim, o mesmo daquela guinada à direita que de guinada ou de direita nada tinha. Mas não, não esse. Um outro, em verdade. Explico.

Gosto muito e acompanho a carreira de Antonio Prata há bastante tempo. Tenho especial admiração pela forma como constrói suas crônicas, de um jeito franco, direto, mas ao mesmo tempo envolvente, que instiga o leitor a refletir sobre os assuntos que aborda. É dono de um texto escorreito, de leitura fluida, que parte da observação das miudezas e superfície do cotidiano – dele, mas que, da forma como o apresenta, poderia perfeitamente ser o seu, o meu, o nosso – para alcançar as grandezas e profundidade do espírito e intelecto humanos. A simplicidade aparente de sua escrita, permeada ainda de um permanente bom humor, dota até os mais espinhosos temas de uma leveza ímpar, residindo neste ponto o grande trunfo de seus textos.

Esse estilo, que lhe é tão característico, há de sobra na excelente coletânea Meio intelectual, meio de esquerda – como se definiu em uma crônica extremamente divertida e (auto)crítica, ambientada nos “bares meio ruins”, do tipo que costuma frequentar – ou, então, na belíssima “Recordação”, em que, pela boca e memória de um motorista de táxi, questiona de modo sutil, embora contundente, o hábito de registrar para a posteridade o que em nossas vidas é extraordinário, deixando de lado as pequenas coisas e gestos diários que realmente nos definem e, por isso mesmo, mereceriam registro.

É esse mesmo Antonio Prata que, em essência, aparece no recém-lançado Nu, de botas e que há pouco me fez companhia. Desta vez, é bem verdade, há um diferencial, que serve de ponto de união entre os textos que se seguem no livro: as pequenezas e episódios de que se ocupa são os que povoaram sua infância – desde os cacos de cerâmica vermelha que ladrilhavam o chão da casa em que morava e que para ele assumiam formas tão inusitadas como as de um elefante de três pernas, até um telefonema para o programa do Bozo – sim, o próprio! – passando pelo divórcio dos pais, a descoberta do sexo, o primeiro amor correspondido, as corridas pela casa nu, de botas. Escreve, com a experiência e o conhecimento de hoje, sobre o que registraram seus olhos e alma de então. E porque memória de criança tem mais de fantasiado do que é real, a riqueza de detalhes e as sensações que o escritor adulto registra têm um componente onírico encantador. Uma leitura particularmente prazerosa, em especial porque, por mais que carregue um diferencial, a essência do cronista está todinha lá: clareza, bom humor, leveza – de linguagem e espírito – a grandeza que se extrai da miudeza, tudo absoluta e deliciosamente envolvente.

E foi exatamente isso o que faltou ao “Guinada à direita”. Não que Antonio Prata não o tenha escrito ou não estivesse lá. Escreveu e estava, com toda sua inteligência e sensibilidade. Mas foi sufocado pela forma com que abordou a questão que se dispôs a tratar, valendo-se, do começo ao fim, em cada frase construída, em cada palavra lançada no texto, do recurso à ironia. Não em doses homeopáticas, ou como uma piscadela ao final – e que seria absolutamente natural, afinal todo cronista tem um olhar irônico para o mundo que o rodeia – mas ironia em estado bruto. Deixou de lado a observação do que é miúdo, para se ater a grandes temas, adotando um tom maniqueísta e uma linguagem agressiva – o que atribuo tanto à acidez que o recurso à ironia como figura de linguagem exige, como ao exagero inerente ao propósito de denúncia que o texto possui. Em função dessa escolha, o texto saiu pesado, o humor que ali está não é bem humorado, o espírito que o domina é carregado – remetendo a um tipo de texto que exige uma postura alerta do leitor, uma pré-compreensão de mundo e bagagem de referências muito específicas. O resultado, pelo menos como eu o percebi: incompreensão generalizada, com a assunção por uns do discurso como se direto, verdadeiro e representativo do pensamento do autor fosse – quando, na realidade, era representativo do pensamento de quem assim o assimilava – e por outros de uma postura de arrogância e descaso em relação aos demais, por terem eles sim (supostamente) entendido o que o autor queria dizer. As pessoas assumiram lados – os que já eram seus – como se em uma batalha estivessem, e o texto se provocou algo foi bate-boca, e não reflexão – ao menos, não do tipo que um texto dessa natureza se propõe a provocar.

Por essas e outras, “Guinada à direita” não está entre minhas leituras prediletas. Não identifiquei ali o Antonio Prata que me cativou. Pode até ser apenas mais uma daquelas reações de fã que se apropria do estilo do artista que adora e se julga no direito de reclamar quando o próprio dele se afasta. Que seja. Para me fazer companhia, eu o prefiro assim: meio intelectual, meio de esquerda, sentado à mesa de um bar meio ruim, dando ouvidos e contornos à conversa de um motorista de táxi, de maneira clara, direta, bem humorada, fazendo o pensamento rolar livre, leve e solto – e tão mais encantador será o encontro se ele, inesperadamente, aparecer nu. De botas.

4 thoughts on “Nu, de botas

  1. Tive o mesmo entendimento. Achei o texto um tanto decepcionante, vindo de quem vem. Nem vi aquilo como crônica, mas um mero texto irônico, de fácil confecção. Bem longe do escritor que aprendi a admirar.

    • Não chego a pensar que tenha sido de fácil confecção, Helder, como se tivesse sido feito de qualquer maneira, sem cuidado. Talvez essa sensação de “facilidade” do texto deva-se ao que tomei a liberdade de identificar como tom maniqueísta, que toma por óbvias questões que estão longe de o ser. Efeito da ironia em demasia, mesmo. Mas, caso não o tenha feito ainda, sugiro que leia “Nu, de botas”, creio que gostará e muito!

  2. Chris, faça um rascunho com um texto usando de ironia. Vc vai ver como vem fácil. Na verdade, o autor quis se posicionar como sendo de esquerda. Mandou um recado.

  3. Pingback: Adeus, ano velho! | Cronicando

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