Pasta "diversos"

Caro Antonio Prata

Quem lhe escreve aqui é uma Leitora Qualquer. O senhor não me conhece, nem teria eu essa pretensão, mas eu o conheço. Bom, ao menos posso dizer isso de seus textos – e se é verdade que a crônica, mais do que qualquer outro gênero literário, revela o que vai na tríade alma-mente-olhos do escritor, então não seria de todo errado afirmar que sei quem o senhor é. Acompanho sua carreira há muitos anos e considero-o extremamente talentoso, o que não só digo e repito a todos – amem-no, odeiem-no ou simplesmente o ignorem – como ainda, para que não haja dúvida a esse respeito, deixei registrado e assinado por estas bandas virtuais, que, bem sabemos, nem o tempo, nem o Obama hão de apagar.

Como sempre apostei no senhor e por razões para mim muito claras, assustei-me com sua “encarnação” do que chamou de “Espírito Paulistano”. Não é a primeira vez, confesso, que um texto seu me prega um susto – houve um antes que considerei, não sei se ingenuamente, uma espécie de “deslize”, problema de forma que sobrepuja conteúdo – mas, desta feita, o baque foi mais profundo. Se quando de sua “guinada à direita” a ironia mal dosada pode ter provocado incompreensão, a de agora é muito evidente em propósitos e alvos – e, mais do que a forma, o que a anima é o que me preocupa.

É que perpassam esse texto duas das posturas que considero menos condizentes com a dignidade do humano como um ser racional. Há, em primeiro lugar, um maniqueísmo que domina todo e cada parágrafo do texto e que, para além das enganosas simplificações a que em regra esse raciocínio binário leva, possui o agravante de se basear em premissas falsas, lugares comuns, tanto sobre a história de formação da cidade a que se refere, como sobre os impactos que políticas públicas e econômicas nacionais e regionais provocaram ao longo das últimas duas décadas no que se pode chamar de sua população – residente ou não.

Não bastasse o maniqueísmo desinformado, solução tão fácil quanto perigosa, o senhor ainda me vem com preconceito. Este, a bem da verdade, é filhote daquele, mas ganha vida própria no texto, ao eleger determinados alvos – seja por origem étnica, condição econômica ou convicção política – e atribuir-lhes certos comportamentos, estendendo-os de forma generalizada para todos aqueles que julga se encaixarem nos perfis que traça. Esse tipo de discurso não se presta à denúncia, tampouco à reflexão, que bem poderiam ser feitas a propósito de vários dos pontos tocados no texto, mas tão somente a reforçar (quando não a criar novos) estereótipos e alimentar uma disputa entre lados falseadamente opostos, da qual todos saem perdendo.

Porque me recuso a julgá-lo e à sua obra com base em apenas dois textos – afinal, se o fizesse, estaria eu a incorrer naquilo que considero comportamento indigno – começo a acreditar que o erro esteja em querer, das grandes questões da vida, colocar em evidência as pequenezas que as aniquilam. Para uma Leitora Qualquer, melhor seria se ficasse no que sabe e faz tão bem: extrair das pequenas coisas e gestos do cotidiano a grandeza que neles há.

Que saudades do autor que dizia frequentar bares meio ruins – em aparente autocrítica que, em verdade, servia tão bem de veículo à ironia em seu estado mais perfeitamente acabado – autor que soube extrair beleza de uma conversa de táxi, que revelou, com naturalidade, intimidades do quilate das corridas que fazia, pela casa, nu, de botas. Saudades da época em que nos mantinha grudados ao relato de competições e traquinagens, angústias e descobertas de infância e adolescência, sua transposição para a vida adulta – proezas com as quais foi merecidamente incluído entre os melhores jovens escritores brasileiros, por uma das mais respeitadas publicações literárias da atualidade.

O senhor há de me achar uma romântica incorrigível. Dirá que olho para seus textos em busca do que quero encontrar, e não do que eles têm a oferecer. Discordo. O senhor é quem se revela de acordo com o que escreve. E porque aquilo que escreve em textos dessa natureza destoa demais do que lhe é característico, abre-se inexoravelmente ao escrutínio de quem há tanto tempo o conhece. Há questão mais séria, numa relação, do que procurar compreender o que pensa e sente aquele quem é objeto de sua afeição?

Senhor cronista, caso a sensibilidade do escritor que habita por trás das lentes do intelectual ainda estiver lendo esta missiva, peço encarecidamente que ouça meu apelo: se continuar a se valer da ironia apelativa em vez da crítica construtiva, se continuar a amesquinhar questões sérias em nome de uma popularidade fácil, se seguir reforçando estereótipos preconceituosos em detrimento do diálogo respeitoso, é grande a probabilidade de, em mais alguns textos, eu não o reconhecer – e tudo o que eu, como uma Leitora Qualquer, menos quero é você longe de mim.

Poderia dizer ainda mais, mas me parece melhor, por ora, subscrever-me.

L.Q.

*

Obs.: Este texto é uma “pseudo-paráfrase”, uma espécie de homenagem a um autor cuja obra admiro. Está longe de ser ficção. As ideias de L.Q. são as minhas e espero, sinceramente, que os rumos que por vezes sua escrita toma, caro cronista, não o apartem de minha cabeceira, tampouco o levem – ou a mim a querer mandá-lo – à distante Reykjavík.

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